quinta-feira, 30 de outubro de 2008

ESMERALDA (João Paulo Feliciano Magalhães)


No absinto de teus olhos tão brilhantes,

Embriagaram estes meus olhos de infante!

 

Teus olhos claros

com tal encanto me escolhem

entre os mortais

que vivem em mundos de ninguém,

pois só teus olhos

levam minh’alma muito além

do azul dos montes

em que meus olhos se encolhem.

 

No absinto de teus olhos tão brilhantes,

Embriagaram estes meus olhos num instante!

 

Mas os teus olhos,

só engendram sã pureza,

em minha mente,

amor em raios tão azuis.

e com seu verde,

sorriso e alma só de luz

capturou

minh’alma em rios de certezas.

 

No absinto de teus olhos tão brilhantes,

Embriagaram estes meus olhos diamante!

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Eclipse das águas


A alegria 
das águas de um rio 
não é comparável 
à felicidade do imenso mar.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

ECOS DA NEBULOSA (João Paulo Feliciano Magalhães)


Vivo cais,
Minha paz
Verte em tais
Letras-sais...

Grandes sóis...
Fortes nós...
Curvas sós...
Girassóis...

Mar incerto...
Verdes lábios...
Mira a mente...

Luz por perto...
Blue dos sábios...
Olhar fluente!...

PRÉ-CONSEQÜÊNCIA (João Paulo Feliciano Magalhães)


A insônia
De corpos e olhos,
De seres e seios,
Diante do chip da existência
É gerado por
Bitys e bichos,arnes e cortes
Da conexão...

terça-feira, 21 de outubro de 2008

TRANSFIGURAÇÃO DA RESPLANDECÊNCIA (João Paulo Feliciano Magalhães)


Laços luminosos que perpassam o tempo

E com tal luz e vento

Toca o Mar de Estrelas e o Mundo Divino deseclipisados.

Engendrados pela Tua mão boreal.

 

E teu olhar, de minguante a cheio

Enche mentes e ethos

Corpos e corações

Com teu pó estrelar.

 

Teus pés forjam o solo

No mais nobre ouro celeste,

Singelo e cintilante...

Que num instante

Resplandece céus, sal e solo

Com passos seguros.

 

Vestistes com a Via Láctea...

Tens o universo movimentado

Pelo teu sopro...

E com a sibilância de teu sorriso

Sussurra luz

Lumine!... Lumine!...

domingo, 19 de outubro de 2008

INQUIETUDES (João Paulo Feliciano Magalhães)


Perco-me nos labirintos de meus pensamentos
De processador ultra-patético,
E, com a fluência e brio de um cético,
Estilizo tua boca em minha mente de altas vozes.

Teus lamentos são mares profundos...
De tão profundos, azuis...
Azul dos meus olhos lânguidos...
Mas híbridos, porque te ouvem on line...
E tua mão no meu rosto por trás do portão
De grades tristes
Feito o mar na penumbra
Que só tu e eu vimos às cinco da tarde de dois mil e seis...
Que não é sete...
E que se tornou oito.

Tuas palavras me investem um clichê de sórdido,
Mas com argamassa de gelatina,
Pois só tu penetraste meu HD profundo
E viste um ator sem suas máscaras.

Chama-me do que quer...
Mas não queira enganar-te,
Pois conheço o fundo do teu mar
Por ter olhado a maré de teus olhos
Que não salgaram os mares pessoianos.

E tua mão arrasta minha constelação
Feito a língua duma amante
Em minha nuca.
Só tu tiveste o caminho da minha nuca
Nua e velada pela tua face de afeto.

Teus verbos no pretérito perfeito
Só não tem a perfeição
E a segurança do sujeito certo de seus conflitos resolvidos.

Agrida-me! Eu extraio o néctar de teu ódio.
Insufle o mundo! Eu já bebi de teus alentos.
Só não nega
Que fui areia em tuas mãos
E que as abriste ao vento do tempo
E que os mesmos grãos
Nunca voltarão.

Serenidade, Verde Azul!
A ti, apenas serenidade!

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

PEQUENO ADENDO


Caros leitores



Teho publicado aqui nesse blog textos de autores consagrados sob uma justificativa: o que é eterno sempre dura (que me perdoe o poetinha). Porém, tais textos desses autores só tem vida mediante sua leitura. Sou defensor da leitura como despoluição dos maus flúidos, expulsão de vampiros de almas líricas e outros. Portanto, gozem da leitura dos tão honrados autores consagrados -- e me perdoem os clichês, mas era irresistível.



Afagos musicais!

J. P. Feliciano Magalhães

CLARICE LISPECTOR


AMOR
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha enfim espaçosa, o fogão enquiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar a enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um hoem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes inisíveis, que viviam como quem trabalha - com peristência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e escolhera.
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.
O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viram jantar - o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir - como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada - o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenidada para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão - Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava - o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgira-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.
Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.
A rede de trico era áspera entre os dedos, não íntima mas como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão - e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.
O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pode localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.
Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.
Um movimento leve e íntimo a sobressaltou - voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato profundo. E a morte não era o que pensávamos.
Ao mesmo tempo que imaginário - era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega - era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumadas... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos, enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve mêdo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria - e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.
Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito - o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava - que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado - amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal - o cego ou o belo Jardim Botânico? - agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair numa cadeira, com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.
Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lado dos que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo - e que nome se deveria dar à sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar o leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.
Humilhada, sabia que o cego prefereria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.
Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.
Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.
Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros.
Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana predeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.
Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruto que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.
Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com seu marido diante do café derramado.
- O que foi?! gritou vibrando toda.
Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:
- Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.
Mas diante do estranho rosto de Ana, espio-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
- Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.
- Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.
Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade.
E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteva-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

MACHADO DE ASSIS


A Cartomante



Machado de Assis


Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou! Interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?
Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.

GABRIELA MISTRAL


LA TIERRA

Niño indio, si estás cansado,
tú te acuestas sobre la Tierra,
y lo mismo si estás alegre,
hijo mío, juega con ella...

Se oyen cosas maravillosas
al tambor indio de la Tierra:
se oye el fuego que sube y baja
buscando el cielo, y no sosiega.
Rueda y rueda, se oyen los ríos
en cascadas que no se cuentan.
Se oye mugir los animales;
se oye el hacha comer la selva.
Se oyen sonar telares indios.
Se oyen trillas, se oyen fiestas.

Donde el indio lo está llamando,
el tambor indio le contesta,
y tañe cerca y tañe lejos,
como el que huye y que regresa...

Todo lo toma, todo lo carga
el lomo santo de la Tierra:
lo que camina, lo que duerme,
lo que retoza y lo que pena;
y lleva vivos y muertos
el tambor indio de la Tierra.

Cuando muera, no llores, hijo:
pecho a pecho ponte con ella
y si sujetas los alientos
como que todo o nada fueras,
tú escucharás subir su brazo
que me tenía y que me entrega
a la madre que estaba rota
tú la verás volver entera.

GOTAS DE HIEL
No me cantes: siempre queda
a tu lengua apegado
un canto: el que debió ser entregado.

No beses: siempre queda,
por maldición extraña,
el beso al que no alcanzan las entrañas.

Reza, reza que es dulce: pero sabe
que no acierta a decir tu lengua avara
el sólo Padre Nuestro que salvara.

Y no llames la muerte por clemente,
pues en las carnes de blancura inmensa,
un jirón vivo quedará que siente
la piedra que te ahoga
y el gusano voraz que te destrenza.


COPLAS

Todo adquiere en mi boca
un sabor persistente de lágrimas:
el manjar cotidiano, la trova
y hasta la plegaria.

Yo tengo otro oficio,
después del callado de amarte,
que este oficio de lágrimas, duro,
que tú me dejaste.

¡Ojos apretados
de calientes lágrimas!
¡Boca atribulada y convulsa,
en que todo se me hace plegaria!

¡Tengo una vergüenza
de vivir de este modo cobarde!
¡Ni voy en tu busca
Ni consigo tampoco olvidarte!

Un remordimiento me sangra
de mirar un cielo
que no ven tus ojos,
¡de palpar las rosas
que sustenta la cal de tus huesos!


LA LLUVIA LENTA

Esta agua medrosa y triste,
como un niño que padece,
antes de tocar la tierra
desfallece.

Quieto el árbol, quiero el viento,
¡y en el silencio estupendo,
este fino llanto amargo
cayendo!

El cielo es como un inmenso
corazón que se abre, amargo.
No llueve: es un sangrar lento
y largo.

Dentro del hogar, los hombres
ni sienten esta amargura,
este envío de agua triste
de la altura.

Este largo y fatigante
descender de agua vencida.
hacia la Terra yacente
y transida.

Bajando el agua inerte,
callada como un ensueño,
como las criaturas leves
de los sueños.

Llueve… y como chacal lento
La noche acecha en la tierra.
¿Qué va a surgir, en la sombra,
de la Tierra?

¿Dormiréis, mientras afuera
cae, sufriendo, esta agua inerte,
esta agua letal, hermana
de la Muerte?


CIMA

La hora de la tarde, la que pone
su sangre en las montañas.

Alguien en esta hora está sufriendo;
una pierde, angustiada,
en este atardecer el solo pecho
contra el cual estrechaba.

Hay algún corazón en donde moja
la tarde aquella cima ensangrentada.

El valle ya está en sombra
y se llena de calma.
Pero mira de lo hondo que se enciende
de rojez la montaña.

Yo me pongo a cantar siempre a esta hora
mi invariable canción atribulada.

¿Será yo la que baño
la cumbre de escarlata?

Llevo a mi corazón la mano, y siento
que mi costado mana.


DAME LA MANO

Dame la mano y danzaremos;
dame la mano y me amarás.
Como una sola flor seremos,
como una flor, y nada más.

El mismo verso cantaremos,
al mismo paso bailarás.
Como una espiga ondularemos,
como una espiga, y nada más.

Te llamas Rosa y yo Esperanza;
pero tu nombre olvidarás,
porque seremos una danza
en la colina, y nada más.




EM PORTUGUÊS


A TERRA

Tradução de José Jeronymo Rivera

Indiozinho, se estás cansado
Tu te recostas sobre a Terra,
fazes igual se estás alegre,
vai, filho meu, brinca com ela...

Que de coisas maravilhosas
soa o tambor índio da Terra:
se ouve o fogo que sobe e desce
buscando o céu, e não sossega.
Roda e roda, se ouvem os rios
em cascatas que não se contam.
Se ouve mugir os animais;
comer o machado a selva.
Ouve-se soar teares índios.
Se ouvem trilhos e se ouvem festas.

Aonde o índio está chamando,
o tambor índio lhe contesta,
e tange perto e tange longe,
como o que foge e que regressa...

Tudo toma, tudo carrega
o corpo sagrado da Terra:
o que caminha, o que adormece,
o que se diverte e o que pena;
os vivos e também os mortos
leva o tambor índio da Terra.

Quando eu morrer, não chores, filho:
peito a peito junta-te a ela
e se dominas o teu fôlego
como quem tudo ou nada seja,
tu ouvirás subir seu braço
que me jungia e que me entrega
e a mãe que estava quebrantada
tu a verás tornar inteira.


GOTAS DE FEL

Trad. de Ruth Sylvia de Miranda Salles


Não cantes: sempre fica
à tua língua apegado
um canto: o que faltou ser enviado.

Não beijes: sempre fica,
por maldição estranha,
o beijo a que não chegam as entranhas.

Reza, reza que é bom; mas reconhece
que não sabes, com tua língua avara,
dizer um só Pai Nosso que salvara.

E não chames a morte de clemente,
porque, na carne que a brancura alcança,
uma beirada viva fica e sente
a pedra que te afoga
e o verme voraz que te destrança.


COPLAS

Trad. de Ruth Sylvia de Miranda Salles


A tudo, em minha boca,
um sabor de lágrimas se acresce;
a meu pão cotidiano, a meu canto
e até à minha prece.

Eu não tenho outro oficio,
depois do silente de amar-te,
que este oficio de lágrimas, duro,
que tu me deixaste.

Olhos apertados
de candentes lágrimas!
Boca atribulada e convulsa,
em que prece tudo se tornava!

Tenho um vergonha
deste modo covarde de ser!
Nem vou em tua busca
nem consigo também te esquecer!

E há um romoer que me sangra
de olhar um céu
não visto por teus olhos,
de apalpar as rosas
sustentadas pela cal de teus ossos!


A CHUVA LENTA

Trad. de Ruth Sylvia de Miranda Salles


Esta água medrosa e triste,
como criança que padece,
antes de tocar a tierra,
desfalece.

Quietos a árvore e o vento,
e no silêncio estupendo,
este fino pranto amargo,
vertendo!

Todo o céu é um coração
aberto em agro tormento.
Não chove: é um sangrar longo
e lento.

Dentro das casas, os homens
não sentem esta amargura,
este envio de água triste
da altura;

este longo e fatigante
descer de água vencida,
por sobre a terra que jaz
transida.

Em baixando a água inerte,
calada como eu suponho
que sejam os vultos leves
de um sonho.

Chove... e como chacal lento
a noite espreita na serra.
Que irá surgir na sombra
da Terra?

Dormireis, quando lá foram
sofrendo, esta água inerte
e letal, irmã da Morte
se verte?


CUME

Trad. de Ruth Sylvia de Miranda Salles


É a hora da tarde, essa que põe
seu sangue nas montanhas.

E nesta hora alguém está sofrendo;
uma perde, angustiada,
bem neste entardecer o único peito
contra o qual se estreitava.

Há algum coração em que o poente
Mergulha aquele cume ensangüentado.

O vale já sombreia
e se enche de calma.
Mas, lá do fundo, vê que se incendeia
de rubor a montanha.

A esta hora ponho-me a cantar
minha eterna canção atribulada.

Sou eu que estou batendo
o cume de escarlate?

Ponho em meu coração a mão e o sinto
a verter quando bate.


DÁ-ME TUA MÃO

Dá-me tua mão, e dançaremos;
dá-me tua mão e me amarás.
Como uma só flor nós seremos,
como uma flora, e nada mais.

O mesmo verso cantaremos,
no mesmo passo bailarás.
Como uma espiga ondularemos,
como uma espiga, e nada mais.

Chamas-te Rosa e eu Esperança;
Porém teu nome esquecerás,
Porque seremos uma dança
sobre a colina, e nada mais.



Extraídos de GABRIELA MISTRAL & CECÍLIA MEIRELES; GABRIELA MISTRAL Y CECÍLIA MEIRELES. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; Santiago de Chile: Academia Chilena de La Lengua, 2003

PABLO NERUDA


A LETRA

Assim foi. E assim será. Nas serras
calcárias, e a beira
da fumaça, nas oficinas,
há uma mensagem escrita nas paredes
e o povo, só o povo, pode vê-la.
Suas letras transparentes se formaram
com suor e silêncio. Estão escritas.
Amassaste-as, povo, em teu caminho
e então sobre a noite como o fogo
abrasador e oculto da aurora.
Entra, povo, nas margens do dia.
Anda como um exército, reunido,
e bate a terra com teus passos
e com a mesma identidade sonora.

Seja uniforme o teu caminho como
é uniforme o suor da batalha,
uniforme o sangue poeirento
do povo fuzilado nos caminhos.
Sobre esta caridade irá nascendo
a granja, a cidade, a mineração,
e sobre esta unidade como a terra
firme e germinadora se há disposto
a criadora permanência, germe
da nova cidade para as vidas.
Luz dos Grêmios mal tratados,
pátria amassada por mãos metalúrgicas,
ordem que saiu dos pescadores
como um ramo do mar, muros armados
pela alvenaria transbordante,
escolas cereais, armaduras
de fábricas amadas pelo homem
Paz desterrada que regressa, pão
compartilhado, aurora, sortilégio
do amor terrenal, edificado
sobre os quatro ventos do planeta.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

AMOR... AMOR... AS PISTAS DA HIWAY DA VIDA (João Paulo Feliciano Magalhães)


Já foram tantos que enunciaram amor...
Tantos homens de almas líricas...
E de almas sórdidas...
Tantos amantes em sangue eruptivo...
Tantos lábios musicais...

Os falaciosos proferiram amor...
A de alma volúvel sussurrou-a ao pé do ouvido parabólico...
A de olhos verdadeiros, de tão castanhos...
Brilham suas verdades...
Mesmo que digam que não disseram... que não é verdade.

Singelos poetas...
Poetas maiores...
Artistas urbanos...
Até os sátiros... oh, os sátiros... sussurram ao pé do...
Mármore...
Os viventes de vidas comuns...
Os viventes de suas fases extraordinárias...

De tão gritado...
De tão coca-colarizado que a palavra amor foi...
Prefiro proferi-la
Não necessariamente a quem mereça...
Mas, de certo...
A quem quer ouvi-la.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

ABAULADO E ABALADO (João Paulo Feliciano Magalhães)


Os cacos do escudo de dedo,
Outrora abençoado...
Descartado com martelo e foice...
Hoje foram fundidos...
Fusiformes no discurso do fogo...
E forjados com sol e lua.

João Rosa de Castro


ODE À MUSA E AO PINTOR
(a Maria Fernanda Cândido e Luis Roberval Sales)

Pensou dizer sem palavras ou cores
E em sentir com eternos louvores
E fez silêncio do brilho mais puro
Iluminando um caminho escuro.

O clarão dos matizes fugindo-me os dedos
É que então permitiu-me saber-lhe os segredos
E o meu coração que já sangra ao vê-la
Empresta o escarlate aos seus lábios na tela.

Ouviu canções e lembrou o passado
Agiu e agiu no que tinha atuado
Filosofou sob o céu tão aberto
Pra esperar um futuro incerto.

Esperança mantém-nos todos ligados
Essas mesmas canções eu já havia escutado.
Meu pincel transferiu-as à sua face no canvas.
Derramei no seu rosto bossas novas e sambas.

Maria sabe que nenhum espelho
Ou o produto de um aparelho
Se assemelha às cores do retrato
Que só a alma reluz, a cada traço.

E eu imagino: nem o próprio tempo
Nem qualquer tristeza ou algum desalento
Tornam esmaecidas as cores contempladas
Nem mesmo esquecida a beleza retratada.

Maria fita a sua face eterna
E então sorri a sensação interna
De que o amor reflete toda arte,
De que o amor está em toda parte.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

SUSPIRO E SUSPENSE NA TERRA DO INSANO REPOUSO )João Paulo Feliciano Magalhães)


O que é sono
No corpo de células vivendo pateticamente...
Pinçando os sabores dos lábios cheios de volúpia...
Ou nas cavernas cerebrais, grandes criptas em que vozes ecoam...
A todo instante do grande sistema em funcionamento...?

O que é o sono.
Se a alma, de insônia, enlouquece as matrizes mentais...?

O que é que sou?

domingo, 12 de outubro de 2008

UM POETA E OUTRO POETA (João Paulo Feliciano Magalhães)


Não se compara dois vassalos da arte
E de almas mundo
Pois,
O um mundo cabe noutro mundo
Mas dois mundos não cabem num par de olhos castanhos.

Beijo cicuta!!!

PRIMAVERA GÓTICA (João Paulo Feliciano Magalhães




É noite. Meus passos acelerados naquelas curvas sibilantes. Os carros que, outrora passaram rallentando o asfalto, agora aceleram diante da pista tentadora, tal qual boca de vampira. Passos, rodas, sistema cardiovascular... tudo acelerado! Tudo num ritmo frenético, mesmo depois das onze da noite.
Árvores, muros, lojas, casas, carros abandonados, igrejas em “vigília”... meus olhos passavam por tudo, instagmamente, bebericando dos raios e sombras que se fundiam naquelas curvas. Para cada lugar, uma palavra me vinha à mente: ora doces, ora letais, mas sempre frenéticas, sanguíneas, sibilantes como as curvas.
Meu celular: “Não, ainda não cheguei! Desisti do ônibus; resolvi ir a pé”. Discurso preocupado?! Não há tempo para pensar nisso... a noite e o silêncio estão a dizer tudo. Tudo mesmo, desde os primeiros sussurros, até os voluptuosos gritos: “Saia!... Tive vergonha de você!... Não me ouve!... Sinto-me solitária!... É maior do que eu!...” Não há tempo, definitivamente não há tempo para pensar... enunciados eloqüentes – até certo ponto – mas frios e anavalhados.
“Alô!... Falta pouco!”... e cada giro das rodas eram um dia girado no carrossel dos anos – com pouca luz, mas de luz. Meus passos já não cabem em mim... quero correr... correr, não sei do que, mas de quem eu sei...
O “termo inflacionado”, presente nos discursos dos namorados, certamente foi o mais eloqüente em minha mente dissonante. Ecoava como num violão de cedro bom, resplandecia como o metal nobre do dedo – agora desalquimisado --, vibrava... tilintava... enlouquecia... mas não morria, como não morreu. Tal termo deveria ser gasto não com o “ser gasto”, mas com o ser de alma simétrica ao sentido de tal palavra. Parece combustível dos meus pés.
“Fique em paz! Eu te ligo quando chegar!”... mas e a minha paz? O que é a paz numa escala hipócrita “porto seguro” a um mero “romântico”, com suas “coisas de romântico”? A paz não está nas palavras, nem em sua ausência, mas na sabedoria de usá-las ou deixar de usá-las – e o silêncio continua a dizer. Passos... rodas... coração... portas... muros... bocas... mãos... olhos... palavras... silêncio... mãos... passos... porta... coração... rodas... muros... olhos... palavras... silêncios... gritos....
-- Hei, que horas você vai trabalhar hoje?
-- Às sete. Que horas são?
-- Seis!
-- E o dia?
-- Hoje é... vinte e oito de agosto.
-- É... um dia depois dos vinte e sete...

sábado, 11 de outubro de 2008

Inspiration

William Blake

When the green woods laugh with the voice of joy,And the dimpling stream runs laughing by;When the air does laugh with our merry wit,And the green hill laughs with the noise of it;

OLHO DE VIVO (João Paulo Feliciano Magalhães)



Olho direito:
-- Os seios ladeirantes da musa morta...
-- É tarde no beco frio da fina sombra...
-- Os lábios trevecentes da deusa fria...
-- E meus passos milimetrados pelo GPS da alma...
-- Os rastros ofuscados do riso triste...
-- E os olhos da grande pequena irmã me vigiam até as moléculas...
-- O verde indigente do nome fosco...
-- E os vapores vampirescos de sua boca carmim...
-- O azul brilhante do falso diamante...

-- Uuuuuuuuuuu!!! -- sopra meu ouvido megafônico!
Olho, de tão biônico,
Absorveu os drives e a saturação...
E o sabor do gênero menos de Aristóteles:
A infâmia cômica!

Carnavais de gatos dark...
Suítes pobres... de tão pobres... felizes...
O batom biônico: rosa ou vermelho???
Espinho ou sangue???
Mão entre o mecanismo ocular e o parabólico ouvido...
Caminho dominado há séculos pela Condessas Prima e Vera...
Verdade que finca seus instrumentos petrolíferos...
No mais profundo e rochoso
Mar da falácia!!!

E o olho esquerdo? Perdeu-se no mês luz do cachorro insano,
Que de tão insano,
Mia com os gatos góticos!!!

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

CRIANÇA VENENO (João Paulo Feliciano Magalhães)



Pen, anis, abunda...
Bum... bum... bum...
Bombardeio bacana
Ca... Ca... Ca...
-- As bacanas romanas seriam anjinhos do mundo freidiano
No cenário do batidão!
Dão! Dão! Dão!
Dominus, dores, demônios...
Simples e não-sincero sussurro
Da moça verde e azul!
Os líquidos claudianos oriundos de sua boca esmeralda
Acidificam a orelha parabólica.
Oca! Oca! Oca!
O gato gótico de gânglios glaciais...
Cor de triste? Só cor de treva!
Tétrico, trêmulo a alavanca boldo.
Curiosa cor azul
Cuidada sem zelo...
Só com dó
Mas sem o dó.

Cuidado! O cuidado do mato e céu é como um crocodilo-mãe que...
Tal qual Crono...
Devora o tempo, a carne, o osso...
Só ouço!!!

E o beijo de Judas???

Olho XX



Tomo a liberdade de evocar Bandeira aqui, pois foi um dos principais observadores dos primórdios da tecnologia e suas consceqüencias no início do século XX. Também é orgasmante inspirar-se em tal sujeito.


RECIFE (Manuel Bandeira)

Há quanto tempo que não te vejo!
Não foi por querer, não pude.
Nesse ponto a vida me foi madrasta,
Recife.

Mas não houve dia em não te sentisse dentro de mim:
Nos ossos, nos olhos, nos ouvidos, no sangue, na carne,
Recife.

Não como és hoje,
Mas como eras na minha infância,
Quando as crianças brincavam no meio da rua
(Não havia ainda automóveis)
E os adultos conversavam de cadeira nas calçadas
(Continuavas província,
Recife).

Eras um Recife sem arranha-céus, sem comunistas,
sem Arrais, e com arroz,
Muito arroz,
De água e sal,
Recife.

Um Recife ainda do tempo em que o meu avô materno
Alforriava espontaneamente
A moça preta Tomásia, sua escrava,
Que depois foi a nossa cozinheira
Até morrer,
Recife.

Ainda existirá a velha casa senhorial do Monteiro?
Meu sonho era acabar morando e morrendo
Na velha casa do Monteiro.
Já que não pode ser,
Quero na hora da morte, estar lúcido
Para te mandar a ti o meu último pensamento,
Recife.

Ah Recife, Recife, non possidebis ossa mea!
Nem os ossos nem o busto,
Que me adianta um busto depois de eu morto?
Depois de morto não me interesará senão, se possível,
Um cantinho no céu,
"Se o não sonharam", como disse o meu querido João de Deus,
Recife.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

ATENÇÃO, SENHORES PSICÓTICOS! (João Paulo Feliciano Magalhães)

É manhã,
O trem azul veloz rumo à bunda da cidade-latex.
Haja bunda no abundante cenário de odores e horrores
Auditivos.
Homens de pernas cowboy...
Mulheres de sacos Brás... bravas de baliza...
Brindam suas cocas menos um.
Jovens latem pelas cachorras...
Cachorras latem pelos seus mobles...
Alguém ainda tenta entrar no mundo fugindo dele mesmo...
Pelas capas duras dos Best help yourself.
Manadas de homens tiranossauros, vorazes, ansiosos por devorarem os...
Bancos cinzas.
Olhos negros balbuciam aos olhos azuis: “tudo isso só pelas cadeiras!”
Um louco grita: “cabe mais um!”
Vai descendo, vai... a correnteza da ignorância.
E os moldes do nação dim dim
Cristalizam a mente de biscoito de coco dos habitantes do trem bizarro
E barro... e barro...

SOL E LUA NO PAÍS DA RISADA FRIA (João Paulo Feliciano Magalhães)


Brinca com o círculo de alquimia que exibiu a outros escâneres aliciados.
Gravados os dois astros do celestial sem corpo.
Feixe que atrai o mecanismo ocular do ser de lábios voluptuosos.
Será? Será? Sereia do mar de pedra!
Foi forjado o epitáfio com tinta e hemoglobina.
Instalaram novos escâneres na Mente Felix.
A vela arde... a mente dela incendeia-se...
Paz? Pax das paixões e falsas felicidades.
Timtim! Seu último drink dramático.
Passos em meio ao lixão e os tidos como lixo.
Esfera e fera, faca e faceta, sanguínea sátira... do falso sorriso perfeito.

Ainda tem cara maple de querer o meu sólido firmamento, orelhas de concreto?

domingo, 5 de outubro de 2008

ESTAMPA DO FALSO TEATRO (João Paulo Feliciano Magalhães)



É curioso como os sentimentos são mascarados atrás dos sorrisos. O outro -- ou a outra -- ri eufórico e falacialmente, abraça, beija, mas basta uma olhada um pouco mais profunda em seu globo ocular e... pronto! a verdade vasa como água numa peneira.
É mágico ver esse outro – ou essa outra -- com um sorriso-persona estampado em sua face... hum... “maple”, sendo que, da mais profunda caverna cerebral de sua cabeça, digamos, dinossauro, emergem sentimentos vulcânicos.
Por sua boca, outrora cantada pelo... óbito a essa fase... “poeta menor”, é engendrada a tal “palavra inflacionada”, muito proferida no discurso de canções de Zezé, Belo e outros do mesmo clã. Seus vocábulos, simples, na superfície, mas cheios de intenção e cianureto sentimental: “anjo”, “amigo”, “te adoro”, “meu mestre”... belo léxico-líquido-fatal que Sócrates e/ou Hamlet conhecem bem – talvez seus vermes também – chego a ouvir os risos de tais vermes. Olhos dos olhos fogem. Beijo no rosto como formalismo -- ora, deve-se manter o ethos de “feliz” com o estereótipo da “alegria eufórica”.
De certo, esses tais sentimentos configuram-se num “argumento” para o belo – belo mesmo? -- sorriso-persona. Quem também figura na cena, levanta hipóteses acerca desse máscara que é o tal sorriso, as quais essa tal pessoa, em “check” nem supõe. E alguma dessas figuras na cena é disputada numa luta de um cavaleiro apenas – que me perdoem os honrados medievais e os trovadores. Pura bobagem e fanfarrice de um ator de ladeira íngreme.
Com efeito, caro co-enunciador, esse sorriso-persona poder-se-ia se chamado de sorriso-de-ator? Sim...? Definitivamente, não! Nunca! Isso porque seria uma blasfêmia ao tablado sagrado comparar o que ocorre na nobre arte e o que acontece na curiosa vida e porque o ator verdadeiro tem consciência de seu sorriso e de seu nobre ofício verossímil concedido por Deus, já o outro – ou a outra --... ah, pobre alma confusa e “sandia”... não tem consciência nem de seus pés no chão, quanto mais da eficácia de sua máscara satírica-alegre-falaciosa.
Não quero terminar todo esse discurso – perdoe-me as viagens luz-guaianases mentais -- com uma injunção do tipo “sorria e seja sincero” – afinal de contas, isso não funcionaria com os seres humanos cujos corpos abundam progesterona --, seria hipócrita e paradoxal demais. Apenas enuncio singelas afirmativas-sínteses: certos sorrisos de alegria têm um efeito perlocutório desastroso, não escondem nada, ao passo que muitos sorrisos de felicidade não precisam esconder nada, isso porque transparecem um estado pleno, não efêmero tal qual a (menor) alegria.